'É INSUPORTÁVEL O AR QUE RESPIRAMOS': A SITUAÇÃO DE MULHERES EM MEIO A SECA HISTÓRICA NO AMAZONAS

 

Seca histórica no Amazonas tem causado morte de animais marítimos, como botos e pirarucus — Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá
Seca histórica no Amazonas tem causado morte de animais marítimos, como botos e pirarucus — Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

‘É insuportável o ar que respiramos’: a situação de mulheres em meio a seca histórica no Amazonas

A maioria dos municípios amazonenses estão em estado de emergência devido ao intenso período de estiagem, considerada a mais severa em 40 anos e impactada por mudanças climáticas. Com os níveis do rio mais abaixo do que o normal, moradores do interior têm mais dificuldade no deslocamento para estudar e comprar alimentos; enquanto em Manaus a preocupação é com o calor extremo e a fumaça das queimadas


Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo

06/10/2023 05h04  Atualizado há 2 meses


“Uma tristeza imensa de ver.” É assim que a professora Inês Alencar, 40 anos, se sente ao ver as imagens de centenas de pirarucus, botos e outros animais que passaram a aparecer mortos à beira dos rios do Amazonas. Os animais estão morrendo em decorrência da seca histórica que o estado vem enfrentando desde setembro – o que fez o governador Wilson Lima (União-AM) decretar estado de emergência em 55 dos 62 municípios do estado.

 O sentimento de pesar também é compartilhado pela gestora de logística Geyce Ferreira, 30 anos, que vive na capital, Manaus: “No Amazonas, os rios são o que pautam nossa vida, seja locomoção, abastecimento e diversão. É impactante demais olhar para a beira e ver apenas lama.”

Inês e Geyce são duas dos milhares de amazonenses afetados pela estiagem, a mais severa desde a última seca histórica, que aconteceu em 2010. Trata-se ainda da seca mais severa em 40 anos. Além do Amazonas, Pará, Roraima e Acre também atravessam um período crítico de seca, muito mais intenso do que o esperado anualmente – Rio Branco, capital do Acre, também decretou situação de emergência.

O estado do Amazonas passa pelo chamado verão amazônico (que normalmente dura entre agosto e outubro). Neste ano, as temperaturas batem quase 40º C e o período de queimada intenso, que impactam a saúde e o cotidiano. O resultado mais intenso está diretamente ligado aos efeitos das mudanças climáticas – em especial do fenômeno El Niño, que elevou o calor e umidade em pontos do planeta e deve atingir seu pico em dezembro.

A estiagem é esperada em todos os anos, o que faz com que a população se prepare para o período. Mas, em 2023, não teve como: os rios estão secando mais cedo e mais rapidamente do que de costume. Com baixos níveis de chuva e uma temperatura excessivamente alta, a falta de perspectiva de normalização preocupa residentes.

A ativista socioambiental e comunicadora cabocla ribeirinha Odenilze Ramos, 26 anos, explica que, neste ano, os rios começaram a secar de maneira drástica em setembro. Para se ter ideia, ela conta que os rios Negro e Solimões estão secando aproximadamente 30 centímetros por dia neste período. "O impacto das outras secas era muito menor porque eram normais. Agora, aconteceu rápido demais: o que levaria seis meses para o rio secar, aconteceu em dois, três meses."

Dificuldade de locomoção e isolamento

O impacto da estiagem no Amazonas é geral. Além de atingir setores econômicos e sociais – como educação, turismo e logística –, dificulta o abastecimento e acesso das comunidades à água potável, saúde, educação e emprego (principalmente para quem mora no interior do estado).

Odenilze enfatiza que a população ribeirinha, que vive às margens dos rios, é a mais afetada. "Essas pessoas dependem do rio para fazer a pesca, se locomover e para a maioria das atividades do dia a dia, como ir à escola, por exemplo.”

Os rios são a principal forma de locomoção entre um município e outro. A educadora social especializada em gestão de políticas públicas Suelen Araújo, 28 anos, explica que eles ficam mais perigosos, com margens estreitas e altas temperaturas, exigindo mais cautela ao navegar. O resultado disso é o isolamento das pessoas em suas comunidades.

A cabocla ribeirinha Horenilde da Silva Gomes, 43 anos, vive no lago da Acajatuba, em Iranduba, às margens do rio Negro. Conhecida como Nildoka, trabalha ali com turismo, que está com as atividades paralisadas. A falta de condições de fazer visitas turísticas diminui a renda de famílias que se sustentam por meio da economia circular gerada pelo setor.

"Com o rio muito baixo, tem sido complicado para as pessoas que moram aqui também pelo difícil acesso à cidade para comprar alimentos", diz. Inês é uma das pessoas impactadas neste sentido: ela não tem conseguido viajar para comprar alimentos ou ir a consultas médicas, por exemplo.

Como professora, ela conta que crianças e adolescentes não têm tido fácil acesso às escolas. Os alunos precisam enfrentar distâncias maiores – neste momento, alguns estudam remotamente. “Alguns alunos precisam colocar os pés na água ao descer do barco, e ficam sujeitos a acidentes com arraias, por exemplo, e mais expostos a essa quentura excessiva”, diz.

Suelen também vê o impacto em seu trabalho. Ela é educadora da Associação Vagalume, ONG que implementa bibliotecas comunitárias e forma mediadores de leitura na Amazônia Legal Brasileira; e recentemente não conseguiu se deslocar de Carauari, a 787 km da capital, para as comunidades ribeirinhas próximas devido à seca.

"Passei a última semana em Carauari e realizamos a formação [de mediadores de leitura] na própria cidade. Os voluntários conseguiram vir de suas comunidades no barco da prefeitura, mas compartilharam que o acesso está bem difícil. Os barcos estão ancorando distante da comunidade, e eles precisaram andar 45 minutos a pé”, diz Suelen, que ainda é fundadora do Instituto Ágape Manaus, com foco no combate a desigualdades sociais.

O setor comercial também depende intensamente da locomoção dos rios, seja para receber encomendas em Manaus, seja para levá-las para o interior. Geyce depende da cabotagem para isso; serviço que, nos períodos de estiagem, é encarecido pela Taxa Seca: quanto mais raso o rio, maior é a taxa. “No ano passado chegamos a quase R$ 6 mil em taxa por container. Este ano, já passamos de R$ 12 mil.”

“Falo a partir da vivência de quem trabalha na maior rede de varejo do Norte do país. Agora pense no impacto na vida do comerciante do interior que precisa vir a Manaus para abastecer e retornar a sua comunidade – que pode estar a dias de viagem de barco.”

A estudante de jornalismo Karina Oliveira, 25 anos, e sua família sentem esse impacto com a loja de roupas que têm em Manaus. Com a falta de mercadorias e a dificuldade de levar produtos para o interior, a procura diminuiu. O faturamento do negócio familiar já caiu 10%, com perspectiva de mais quedas. "A única solução é trazer a mercadoria de avião, mas é muito caro. Não conseguimos."

Calor e queimadas

Visão aérea de queimada e seca na floreta amazônica, no município de Iranduba, Amazonas, 23 de setembro de 2023 — Foto: Michael Dantas/AFP/Getty Images
Visão aérea de queimada e seca na floreta amazônica, no município de Iranduba, Amazonas, 23 de setembro de 2023 — Foto: Michael Dantas/AFP/Getty Images

No último dia 2, os termômetros de Manaus marcaram 39,2º C, um recorde histórico. A sensação térmica é ainda mais elevada, o que, por si só, já seria suficientemente prejudicial à saúde. Odenilze explica que sente que as temperaturas estão cada vez mais quentes nos últimos três anos. "Você não consegue sair na rua de jeito nenhum nem fazer atividades básicas por causa do calor. É impossível continuar vivendo assim.”

Karina enfatiza ainda o impacto das queimadas: diz que, nas últimas semanas, a capital amanhece quase todos os dias encoberta pela fumaça. "É insuportável o ar que a gente está respirando.” Odenilze afirma que, especificamente em 2023, a fumaça piorou: "A qualidade do ar fica muito ruim. Eu e meu pai passamos mal várias vezes."

A ativista afirma que, em uma das 19 comunidades que compõem a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), onde cresceu, houve a morte de um adolescente de 17 anos pela inalação dessa fumaça.

“No dia 20 [de setembro], a cidade amanheceu com uma cortina de fumaça em todas as zonas, por conta dos focos de queimada, naturais e criminosas, na cidade e região metropolitana. Infelizmente ainda existem muitas pessoas que ateiam fogo em lixo doméstico, folhas, plantações. Em paralelo a isso, outras centenas de pessoas e empresas derrubam árvores, tornando nosso ar cada vez mais poluído e insalubre”, complementa Suelen.

Rede de apoio

No último dia 4, o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, esteve em Manaus ao lado de outros seis ministros – incluindo Marina Silva, ministra do Meio Ambiente.

Lá, anunciou medidas emergenciais que podem auxiliar a população em meio à estiada, como o adiantamento do Bolsa Família; distribuição de cestas básicas e kits de saúde; auxílios a 200 moradores que tiveram as casas destruídas em Beruri; auxílio a pequenos agricultores, pescadores e extrativistas que tiveram perda de produção; e liberação de repasse de R$ 138 milhões para obras de dragagem em trechos dos rios Solimões e Madeira.

Em paralelo, ONGs que atuam na conservação do território amazônico também se mobilizam. O Instituto de Desenvolvimento da Amazônia (Idesam), por exemplo, integra essa frente, e atualmente conta com uma campanha no site e redes sociais de arrecadação de alimentos e água potável para auxiliar populações em situações mais críticas. É possível apoiar neste link.

Mas, para Odenilze, é preciso que haja políticas públicas efetivas em mitigar os efeitos das secas mais intensas e frequentes. Suelen e Geyce concordam com ela. Entre medidas que consideram necessárias estão a construção de trapiches, poços artesianos e distribuição de alimentos para a população ribeirinha.

"São coisas pequenas que poderiam resolver um grande problema. Essas pessoas estão de fato necessitando disso. Sem políticas, elas vão continuar morrendo pelos efeitos das mudanças climáticas", aponta Odenilze.

O governo do Amazonas também tem enviado água e mantimentos para as comunidades afastadas – o que, logo, só poderá ser feito via aérea. “Mas o que estamos vivendo aqui não é uma surpresa. Muitas pesquisas já apontavam para essa situação. O Governo precisa se preparar com mais antecedência para essa sazonalidade”, pontua Geyce.

“É difícil pensar em soluções redondas para essa situação tão difícil. As comunidades estão lutando para sobreviver e conseguir o mínimo para suas famílias. A esperança é que esse período de seca passe logo e que os rios comecem a encher novamente”, afirma Suelen.

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/retratos/noticia/2023/10/amazonas-seca-historica-estiagem.ghtml

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