CORONAVÍRUS RESGATA MEMÓRIA DE TRAGÉDIA YANOMANI E GERA RISCO DE NOVA MORTANDADE

Yanomami - Povos Indígenas no Brasil

Coronavírus resgata memória de tragédia Yanomami e gera risco de nova mortandade: 'Doença pode invadir nossa terra junto com garimpeiros'


Piloto carrega criança yanomami da aldeia de Paapiu infectada por malária, em janeiro de 1990
A descoberta de jazidas de ouro no território Yanomami, há pouco mais de 30 anos, deu início a um capítulo trágico na história dos povos indígenas. A partir de 1987, milhares de garimpeiros invadiram a área, no Norte do país, levando não só destruição ambiental e violência, mas também uma série de doenças fatais para os nativos. Estima-se que morreram até 2 mil indígenas, de uma população de cerca de 20 mil yanomamis no Brasil, a maioria vítima de enfermidades como a malária. Agora, um novo perigo de saúde levado pelo homem branco, com potencial de gerar outra mortandade, assombra a reserva. Na semana passada, um adolescente indígena de 15 anos faleceu após ser infectado pelo coronavírus.
- Nós vivemos com saúde e harmonia na floresta, mas vocês trazem a doença. Eu era uma criança, mas lembro que os garimpeiros chegaram trazendo malária, pneumonia, prostituição, bebida alcoólica e violência - critica o líder indígena Dario Kopenawa, diretor da Hutukara Associação Yanomami e filho do xamã Davi Kopenawa. - Agora, todos estamos em risco. Brancos e indígenas. Estamos usando nossa rede de radiofonia para monitorar e pedir ao povo que fique isolado nas aldeias. Não queremos mais mortes. Mas os garimpeiros estão aqui, eles são muitos. A doença pode invadir nossa terra junto com eles.
Garimpo ilegal na área dos Yanomamis, em 1989: desmatamento
Diferentes reportagens do GLOBO entre os anos 80 e 90 relataram a tensão entre exploradores e povos da floresta. O Norte do país era alvo de ações de grande porte do governo federal, como a construção da BR-210, chamada de Perimetral Norte, e o RadamBrasil, projeto de monitoramento do solo que detectou reservas minerais nas terras yanomâmis. A partir de 1987, a área foi invadida por mais de 40 mil garimpeiros, atrás das jazidas de ouro e cassiterita encontradas pelo projeto. Os indígenas começaram a morrer às dezenas, vítimas de doenças e conflitos. A tensão continuou numa escalada que não terminou quando o território foi oficialmente demarcado, em 1992, reservando uma área de 9,6 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas.
Em julho de 1993, garimpeiros invadiram a aldeia de Haximu e mataram 16 ianomamis, entre crianças, mulheres, homens e idosos. Eles ainda colocaram fogo na aldeia, deixando para trás o cenário de um crime que ficou conhecido como o Massacre de Haximu. Em 1997, cinco garimpeiros envolvidos foram condenados pelo crime de genocídio. Foi a primeira condenação desse tipo no Brasil.
O líder yanomami Davi Kopenawa com o então presidente José Sarney, em 1989
Ao longo da década de 90, o número de garimpeiros foi reduzido graças à repressão do governo federal, que atuou para proteger os indígenas, destruindo maquinário e mais de cem pistas de voo ilegais. Mas eles voltaram em hordas de milhares de invasores. A presença criminosa desses homens no território vem elevando a incidência de malária e, agora, representa um canal de disseminação para o coronavírus. De acordo com a Hutukara Associação Yanomami, a aldeia Helepe, onde cresceu o menino Alvanir Xrixana, que morreu infectado pelo coronavírus, fica numa área de grande circulação de garimpeiros. 
Segundo a associação, o adolescente estava no município de Alto Alegre quando adoeceu. Ele chegou a ser internado no Hospital Geral de Roraima (HGR), em Boa Vista, mas o exame deu negativo para Covid-19. Liberado pelos médicos, Alvanir foi com a família para a aldeia, no território ianomami, onde seu quadro piorou. Ele foi, então, recolhido por agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e, mais uma vez, internado no HGR, onde morreu pouco depois de um novo exame acusar a infecção por coronavírus.
Policiais federais retiram garimpeiros ilegais de área Yanomami, em 1990
- Estão todos com medo, os velhos sobreviventes viram muitos morrendo de sarampo e outras doenças no passado, eles sabem o que é isso, respeitam o pedido de isolamento - explica Dario Kopenawa, que está confinado em Boa Vista, dirigindo a associação neste momento de crise. - Mas nada disso é novidade para a gente. Meu pai falou sobre a epidemia há anos. Ele alertou sobre a xawára. Nós, indígenas, sempre alertamos que não pode destruir a floresta e envenenar os rios. Agora, estamos vendo a vingança da natureza porque o homem branco não deixa a Mãe Terra em paz. 
Xawára é como os Yanomami chamam as epidemias do homem branco. Sarampo nos anos 70, malária a partir da década de 80 e, agora, o coronavírus. Na cosmologia desse povo milenar, quando Omame, criador da humanidade e da cultura Yanomami, fez o mundo, ele escondeu a xawára debaixo da terra e disse aos indígenas que eles não deveriam mexer naquilo. No livro “A queda do céu” (Cia das Letras, 2015), fruto de uma parceria entre Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, o xamã explica que o homem branco libertou a xawára quando começou a desmatar e a escavar a superfície para extrair o ouro lá de dentro. Já numa entrevista do líder yanomami para Albert em 1990, Kopenawa diz que “os nabebe, os brancos, depois de terem descoberto nossa floresta, foram tomados por um desejo frenético de tirar essa xawára do mundo da terra onde Omame a tinha guardado”.
Mãe com seus filhos, subnutridos, na região de Surucucu, no Norte de Roraima, em 1991
'Aonde chega o garimpeiro, morre todo mundo', diz antropólogo
O antropólogo e fotógrafo Milton Guran conviveu com os Yanomamis durante quase dois meses, em 1991. Ele presenciou o efeito devastador do garimpo ilegal na área daquele povo, e, desde então, acompanhou a luta pela sobrevivência da etnia, uma das mais numerosas do Brasil. 
- As aldeias mais isoladas no meio do mato estão seguras, mas nas comunidades onde chega o garimpeiro, morre todo mundo. Naquela época, eram 40 mil garimpeiros em idade adulta e 20 mil yanomamis, entre crianças, adultos e idosos, no território brasileiro. Em poucos anos, morreram cerca de 10% da população  yanomami, a maioria por conta de doenças como malária, gonorreia e diarreia. Imagine se morressem 20 milhões de brasileiros agora, com o coronavírus - relata Guran.
Para se aproximar dos indígenas, os garimpeiros contavam com a força de sedução de itens cotidianos no mundo ocidental. Quando estava na reserva, há 30 anos, Guran conheceu um jovem yanomami que vinha trabalhando com garimpeiros. Ao perguntar por que estava convivendo com aquelas pessoas, o fotógrafo ouviu o rapaz dizer que “não posso mais viver sem sal”. Semanas mais tarde, o antropólogo soube que o jovem yanomami foi assassinado por garimpeiros. Ainda de acordo com Guran, outros produtos “simples”, como batom e caixas de fósforo, também exercem forte influência.
Interior de uma casa tradicional Yanomami, na aldeia de Tootobi, Amazonas, em 1991
- Para fazer fogo, o indígena fica 40 minutos girando um graveto. Pense na reação dele se alguém oferece uma caixa de fósforo? Por outro lado, os yanomâmis têm um conhecimento sobre as propriedades das plantas nativas que a gente não faz nem ideia. Eles são cientistas da floresta -  diz o antropólogo. - É uma cultura milenar que evoluiu de forma diferente da nossa. Só que a nossa cultura está destruindo o planeta, enquanto a deles preserva o planeta.
Para o pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Brasil está próximo de permitir uma nova tragédia humanitária na reserva Yanomami.
- Já está acontecendo uma tragédia como a de 30 anos atrás. São cerca de 20 mil garimpeiros no território. Eles entram e saem, recebem mantimentos deixados por aviões. Tudo isso pode levar o vírus - afirma Guran. - Se o coronavírus chegar numa aldeia, vai contaminar todo mundo. A forma de vida deles não permite confinamento. Eles se encostam o tempo todo, compartilham tudo, e sabão não há. Os yanomamis estão sempre limpos, mas eles não têm sabão. E água de igarapé não mata o vírus. A Covid-19 é mais uma arma mortal, a mais potente, jogada sobre os Yanomami pela nossa sociedade. 
O fotógrafo Milton Guran entre indígenas Yanomami, em agosto de 1991
Governo se compromete com recursos, mas não cita garimpo
No último domingo, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, esteve em Boa Vista (RR) com o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, e o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier da Silva. Eles se reuniram com autoridades locais. Segundo um comunicado do Ministério da Saúde, a comitiva informou que “mais recursos” serão destinados à melhoria da qualidade do atendimento nas Casas de Saúde do Índio (Casai) e ao “aumento dos leitos para média e alta complexidade disponíveis para indígenas”. A pasta não divulgou, porém, o valor em reais desse acréscimo de recursos e nem o número de leitos que seriam disponibilizados. 
No comunicado, também não havia uma palavra sobre a questão dos garimpeiros na reserva.

Casos de indígenas infectados por coronavírus disparam e aumentam 156% em 48 horas; Manaus lidera com mais da metade

Capital do Amazonas dobrou os registros em apenas um dia ; Alto Solimões é foco
Daniel Biasetto
15/04/2020 - 20:34 / Atualizado em 15/04/2020 - 21:39
Lideranças ianomâmis se manifestam contra garimpo em suas terras durante o primeiro Fórum de Lideranças da TI Yanomami; adoldescente está entre as vítimas de coronavírus Foto: Vitor Moriyama - ISA
Lideranças ianomâmis se manifestam contra garimpo em suas terras durante o primeiro Fórum de Lideranças da TI Yanomami; adoldescente está entre as vítimas de coronavírus Foto: Vitor Moriyama - ISA
O número de casos de indígenas infectados com o novo coronavírus disparou e teve um aumento de 156% nas últimas 48 horas. No total, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), cresceu de nove para 23 o registro de contaminados desde segunda-feira.  Até agora foram confirmadas oficialmente três mortes de três etnias distintas (kokama, tikuna e ianomâmi), duas delas no Amazonas, estado que concentra quase a totalidade dos pacientes (95%). No boletim divulgado nesta quarta-feira, há ainda 23 casos suspeitos à espera de confirmação.
Manaus ultrapassou o Alto Solimões em número de casos. A capital, que no início da semana tinha seis casos, registra agora 12 contra 8 da microrrregião, que inclui  noves municípios.
Ainda no estado amazonense há casos registrados pelos distritos sanitários do Médio Rio Purus (1) e Parintins (1). O único fora dele é o Yanomami (1), localizado em Roraima, onde morreu na quinta-feira um adolescente de 15 anos. Em todo o país existem 34 (Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) divididos estrategicamente por critérios territoriais, tendo como base a ocupação geográfica das aldeias.
No sábado, o Ministério da Saúde confirmou mais duas mortes de indígenas por coronavírus. Trata-se de um homem da etnia tikuna, de 78 anos, e de uma mulher da etnia kokama, de 44 anos, ambos moradores da região do Alto Solimões, onde há 8 casos confrmados.
Valter Tanabio Elizardo havia sido removido do Hospital de Tabatinga-AM, em UTI Aérea do Estado, para tratar de problemas cardíacos e estava internado no Hospital Delphina Aziz, na capital do Amazonas. Em 25 de março, havia sido transferido para o Hospital Adriano Jorge e, em 31 de março, para o Hospital Francisca Mendes, referência em Cardiologia. Durante o período de tratamento hospitalar, o teste para o novo coronavírus acusou positivo, o que agravou ainda mais seu quadro.
Já a kokama Maria Vargas Castelo Branco estava  internada desde 28 de fevereiro, também em Manaus transferida de São Paulo de Olvença, para tratamento de anemia hemolítica autoimune. De acordo com os médicos, o quadro da paciente agravou-se após a contaminação do novo coronavírus, quando passou a respirar por aparelhos. Ela morreu na quinta-feira. De acordo com o atestado de óbito, a indígena faleceu em decorrência de insuficiência respiratória aguda por Covid-19; anemia hemolítica autoimune; e lúpus eritematoso sistêmico.

Ianomâmis querem garimpo fora

Adolescente ianomâmi estava internado em estado grave com coronavírus Foto: Divulgação
Adolescente ianomâmi estava internado em estado grave com coronavírus Foto: Divulgação
A entidade que representa os direitos dos ianomâmi fez no sábado um alerta sobre o iminente aumento de casos entre indígenas contaminados com o coronavírus depois da morte do adolescente Alvanir Xrixana, de 15 anos, em Roraima.  A Hutukara Associação Yanomami aponta falhas nos cuidados com o indígena desde o primeiro momento em que ele apresentou sintomas da Covid-19, há três semanas, e chama a atenção das autoridades responsáveis para a presença de garimpeiros na comunidade onde a vítima morava.
Localizada no rio Uraricoera, a aldeia ianomâmi onde morava Alvanir é rota de garimpeiros que atuam na região. De acordo com a entidade, são milhares deles que passam por essas águas o ano inteiro. "Agora sabemos que existe o risco da comunidade  Helepe estar contaminada pela doença e ela pode continuar subindo o rio junto com os garimpeiros. O vírus pode invadir nossa terra, junto com os invasores que buscam  o ouro".
A organização pede à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Distrito de Saúde Indígena Yanomami (Dsei-Y) que redobrem os esforços para evitar o contágio de seu povo pelo coronavírus que "nem os não indígenas conhecem, nem sabem curar".
Os índios yanomamis, que já têm caso confirmado da doença no Amazonas Foto: Instituto Socioambiental
Os índios yanomamis, que já têm caso confirmado da doença no Amazonas Foto: Instituto Socioambiental
A organização também faz um apelo à Polícia Federal (PF), à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Exército para que retirem os garimpeiros de suas terras. Em dezembro, após O GLOBO publicar um especial sobre garimpo na região, a PF fez uma operação para prender suspeitos de movimentar 1,2 tonelada de ouro extraído de garimpos em Roraima e na Venezuela.
No domingo passado, uma reportagem do Fantástico, da TV GLOBO, mostrou que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fez uma megaoperação para afastar garimpeiros e madeireiros legais de terras indígenas no sul do Pará. Destruiu barracos e incendiou tratores e máquinas. Dois dias depois, o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, foi exonerado.
Além das três mortes registradas pela Sesai, há ainda outras duas que ficaram fora do balanço: uma senhora borari de 87 anos, de Alter do Chão (PA), e um senhor Muru de 55 anos, de Itacoatiara (AM), ambos só tiveram seus casos diagnosticados depois da morte. Eles não são contabilizados pela Sesai por estarem dentro de um contexto próximo do urbano, portanto, fora de aldeias.

Alto Solimões é foco

Agente de saúde da Sesai mede a temperatura da indígena kokama Suzane da Silva Pereira, que deu positivo para o coronavírus Foto: Arquivo Pessoal
Agente de saúde da Sesai mede a temperatura da indígena kokama Suzane da Silva Pereira, que deu positivo para o coronavírus Foto: Arquivo Pessoal
A primeira confirmação de um indígena contaminado por coronavírus no Brasil foi da agente de saúde Suzane da Silva Pereira, de 20 anos. Ao que tudo indica, ela pegou a doença do médico Matheus Feitosa, com quem trabalha atendendo as aldeias da região do Alto Solimões. Ele foi o primeiro caso do município de Santo Antônio do Içá, no sudoeste do Amazonas, onde a kokama mora.
Ela, por sua vez, contagiou mais três familiares com quem manteve contato: a mãe, de 39 anos; a filha Yara, de 1 ano e 10 meses; e o primo de quarto grau, de 37 anos, todos da etnia Kokama. Os exames do pai e do marido de Suzane deram negatvo.
Em entrevista  por telefone, Suzane contou como tem sido a sua rotina desde que descobriu a doença, do medo de infectar seus familiares e do preconceito sofrido durante esse período que se isolou em casa. Ela ja está fora do período de quarentena e passa bem.
A população indígena foi incluída na segunda fase de campanha de vacinação contra a gripe que começa nesta quinta-feira. A antecipação se deu por conta da vulnerabilidade para adoecimento e complicações por gripe dessas comunidades.
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