EPIDEMIA MOSTRA QUE 'VIRAMOS UM MERCADO DE CARNE HUMANA',DIZ AMBIENTALISTA


O conservacionista americano Russ Mittermeier, da Global Wildlife Conservation Foto: Reprodução

O conservacionista americano Russ Mittermeier, da Global Wildlife Conservation Foto: Reprodução

Epidemia mostra que 'viramos um mercado de carne humana', diz ambientalista

Russ Mittermeier afirma que população global se tornou 'fonte de alimento' para patógenos como o coronavírus e sugere três medidas para evitar novas crises

William Helal Filho
30/04/2020 - 04:30 / Atualizado em 01/05/2020 - 13:01

O pesquisador Russ Mittermeier, diretor de conservação da Global Wildlife Conservation, passa 80% de seu ano viajando. Esteve em 170 países para participar de conferências ou expedições em selvas tropicais (foram 49 visitas somente ao Brasil). Em regiões da Ásia e da África, o ambientalista de 70 anos conheceu dezenas de mercados insalubres que vendem carne de animais silvestres.

São locais como aquele em que o primeiro ser humano teria contraído o coronavírus, após consumir uma espécie ainda não identificada, em Wuhan, na China. Para o conservacionista americano, autor de mais de 300 artigos acadêmicos e com PhD em Antropologia Biológica da Universidade Harvard, chega a ser estranho que grandes epidemias não sejam ainda mais frequentes.
Mittermeier acredita que, com 7 bilhões de corpos sob o céu, a população de homo sapiens se tornou um gigantesco mercado de carne humana, ideal para a proliferação de patógenos.
Nesta entrevista, o pesquisador, que presidiu a Conservation International por 25 anos, propõe três medidas para evitar novas epidemias: banir os mercados que vendem animais silvestres como alimento, reduzir o consumo de carne da indústria pecuária e proteger a biodiversidade da Terra. A Global Wildlife Conservation lançou, em parceria com outras organizações de defesa do meio ambiente, o abaixo-assinado "End The Trade", pedindo a governos do mundo todo que parem com o comércio de animais silvestres.
O que leva o senhor a crer que viramos uma espécie de reserva de alimento?
É uma hipótese que criei porque viajo muito para matas tropicais e já contraí várias doenças, como dengue, esquistossomose e leptospirose. Depois de décadas, comecei a pensar nessas doenças que ressurgem, como ebola, Aids e zika, além de Sars e Mers, que são causadas por outros tipos de coronavírus. No curso da evolução dos seres vivos, quando uma espécie se torna muito abundante, há sempre a proliferação de predadores, parasitas ou patógenos que se beneficiam daquela enorme fonte de alimento. Nós, humanos, nos tornamos uma espécie superabundante no planeta, o que proporciona um ambiente propício para a proliferação de patógenos. Viramos um mercado de carne humana. E em muitos casos, esses patógenos nos atacam por meio do consumo de animais silvestres vendidos em mercados com péssimas condições sanitárias.
Qual seria a primeira medida para impedir novas epidemias?
Vamos desenvolver a vacina para controlar a Covid-19. Mas se não acabarmos com as fontes das doenças, vai surgir algo novo depois. Uma das medidas a se tomar é colocar um fim nos mercados de carne de animais silvestres. Em 2003, depois da epidemia de Sars, a China proibiu essas feiras na província de Guangzhou, onde o surto começou, provavelmente a partir do consumo de uma civeta. Mas a proibição durou pouco tempo. Agora, estão dizendo que vão banir definitivamente. A China precisa ser o modelo para o mundo nessa questão. Mas também há lugares desse tipo em varios outros países da Ásia e da África. Circulando por essas feiras, já vi até mesmo chimpanzés e gorilas sendo vendidos como um alimento que as pessoas realmente apreciam. É como uma tradição.
Pode descrever esses mercados?
São lugares horríveis, fedorentos, com bichos mortos por toda a parte, moscas voando em volta de carcaças ensanguentadas. Não sei como epidemias não acontecem com mais frequência. O Vietnã tem uma indústria bilionária que se baseia no tráfico de animais silvestres, em grande parte para consumo. Em Hanói, já contei 24 mercados vendendo cachorros, sapos, cobras, rãs e vários outros animais. Eles misturam sangue de cobra com álcool e vendem como afrodisíaco. Na África, você encontra macacos mortos, jacarés, pítons… Não estou dizendo que devemos impedir populações nativas, como na Amazônia, de caçar animais selvagens para comer. Estou me referindo a um nicho de mercado que funciona em cidades grandes, com muita concentração de pessoas, onde há um alto risco de contágio. É o lugar perfeito para um patógeno se desenvolver e se multiplicar.
Mercado de animais vivos para consumo em Guangzhou, na China, na época da epidemia de Sars, em 2003 Foto: Foto de arquivo/AP
Mercado de animais vivos para consumo em Guangzhou, na China, na época da epidemia de Sars, em 2003 Foto: Foto de arquivo/AP

Por que tão difícil acabar com essa indústria?
Em parte, porque é algo cultural. Os chineses comem esses animais e usam para sua medicina há cinco mil anos. Na África, a população também consome muitos animais silvestres, e nas cidades chega a ser sinal de status comer um primata. No Congo, certas culturas acreditam que, quando um bebê nasce, é preciso matar um gorila e abrir a barriga dele para colocar o recém-nascido lá dentro. Eu sou sempre a favor de respeitar tradições, mas não tem sentido quando há risco tão grande para a saúde coletiva. Sem falar nas pessoas que compram animais silvestres como bichos de estimação. O macho adulto de um jabuti do Noroeste de Madagascar, muito raro na natureza, vale até US$ 100 mil.
Como um conservacionista, o senhor defende que a manutenção da biodiversidade protege os humanos desse tipo de epidemia. Como?
A redução da biodiversidade nos prejudica porque, com poucas espécies no planeta, esses patógenos vão ter uma variedade limitada de seres vivos para atacar. Manter a fauna rica cria uma espécie de escudo contra zoonoses. Atualmente, 96% da biomassa de mamíferos na Terra é formada por humanos e gado. É um tremendo desequilíbrio. Além disso, animais como vacas e porcos são mais um mercado de carnes que pode levar doenças para humanos. Não é por menos que temos que injetar tantos antibióticos nessas espécies antes de consumir esses animais. Por tudo isso, a redução do consumo de carne animal é outro passo para acabar com as epidemias. Do contrário, serão dois grandes mercados de carne, os humanos e o gado, trocando doenças entre si. Sei que muita gente não vai gostar disso, mas não podemos continuar como estamos.
Acha que a epidemia de coronavírus é um alerta para a Humanidade?
É um grande alerta para o mundo. Precisamos de mudanças no nosso comportamento. Ou então nossa espécie vai continuar correndo um perigo enorme. Temos 17 milhões de pessoas desempregadas nos Estados Unidos, apenas três meses após um recorde de emprego no país. É preciso rever nosso comportamento e entender que nossa vida está ligada à vida no planeta. Precisamos implementar, urgentemente, essas três mudanças: acabar com os mercados de animais silvestres, reduzir o consumo de animais da pecuária e preservar a biodiversidade da Terra. 



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