Vista área do Vale do Javari, onde missionários fizeram voos de helicóptero em plena pandemia de coronavírus Foto: Divulgação/Univaja
Coronavírus revela que Funai não tem controle de terras indígenas, dizem ex-presidentes do órgão
Márcio Meira e Syndey Possuelo afirmam que fundação deveria aumentar fiscalizaçao em áreas de povos isolados e não permitir influência de proselitismo religioso 'agressivo' e agronegócio 'troglodita'
Daniel Biasetto
14/04/2020 - 11:58 / Atualizado em 14/04/2020 - 12:47
O ingresso de missionários em terra indígena com a presença de povos isolados em meio à pandemia do coronavírus mostra inércia da Fundação Nacional do Índio (Funai) no controle dessas áreas e revela que o órgão está entregue a um "proselitismo religioso agressivo" e a um setor do agronegócio "troglodita". A opinião é compartilhada por dois ex-presidentes da instituição, Sydney Possuelo e Márcio Meira.
Nesta segunda-feira, O GLOBO mostrou que religiosos da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) fizeram voos de helicóptero para o Vale do Javari sem autorização da fundação,mesmo depois da edição de uma portaria do órgão e de recomendações do Ministério Público Federal (MPF) de combate ao novo coronavírus para proteção aos indígenas. Regras da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) também foram infringidas.
Mais longevo entre os presidente da Funai, o antropólogo Márcio Meira (2007-2012) diz que o órgão deveria ir além do procedimento protolocar de proibir autorizações de ingresso a terras indígenas na crise do coronavírus e defende ações mais enérgicas do Poder Público e da fundação.
- Aquela região tem forte presença de índios isolados. Do procedimento protocolar está completamente errado uma vez que vivemos uma pandemia. A prioridade da Funai hoje é retirar todo mundo de lá. Entrar com a Polícia Federal e o Ibama e arrancar todos os garimpeiros, madeireiros e missionários, todos aqueles não indígenas.

O ex-presidente da Funai Márcio Meira Foto: Funai/Divulgação
Para ele, a crise do coronavírus esconde e ao mesmo tempo escancara a letargia com que a Funai tem se apresentado diante de questões urgentes nos conflitos em terra indígena.
- A pandemia do coronavírus está, de certa forma, sendo um biombo para esconder a ação violenta desenfreada na Amazônia como um todo, não só contra os povos índigenas, mas também de ambientalistas e lideranças. A mistura disso tudo com coronavírus é simplesmente terrível.
Na opinião de Meira, o contexto político vivido no país e em diversos órgãos do governo federal prejudica ainda mais ações efetivas que protejam os povos indígenas.
- Acho que é uma unanimidade no meio indigenista de que não há, desde 1988, uma situação pior do que esta de agora contra os povos indígenas, como estamos vendo neste governo Bolsonaro. O comando da Funai, por exemplo, foi entregue a grupos do setor do agronegócio mais atrasado, que não tem compromisso com os direitos humanos e nem o meio ambiente. Não quero generealizar, eu falo dos trogloditas.
'Se é irregular, tira e bota para fora'

O indigenista Syndey Possuelo durante expedição com os índios Korubo em 1996 Foto: Arquivo Pessoal
Ex-presidente da Funai entre 1991 e 1993, o indigenista Sydney Possuelo é considerado uma das maiores autoridades quando se trata de povos indígenas isolados. Ele foi reponsável por suspender as autorizações para que missões religiosas entrassem em terras indígenas durante sua gestão e expulsou os missionários da Missão Novas Tribos no episódio dos zoés.
- O episódio dos Zoés foi emblemático. Eu botei todo mundo para fora. Eu cheguei e falei: sai todo mundo daí já, peguem suas coisas e vão embora. Daqui a dois, três dias eu vou chegar com uma equipe e quero todos fora daí. Não está previso em lei, é tudo irregular, tira e bota para rua. É isso que a Funai tem que fazer - defende.
Possuelo diz que a Funai não tem controle nenhum de quem entra e sai de terras indígenas quando o ingresso é pelos ares.
- A Funai nega a autorização de ingresso e daí? Diz que eles estão lá há tanto anos. E daí? A Funai é o órgão de lei que deve zelar pelos índios. Não ter autorizado não significa que não tenha que ir atrás, saber o que está acontecendo lá no Javari, por que que não houve vigilância? Então, ela que vá à Anac e às autoridades que controlam o espaço aéreo para investigar quem autorizou esses voos. Quem é o piloto? Esse piloto está com a carteira em dia? A manutenção dessa aeronave como estava? - questiona.

O missionário Jevon Rich da Missões Novas Tribos do Brasil (MNTB) supostamente sendo resgatado pelo R66. Funai nega que tenha autorizado ingresso de helicóptero e de nenhum outro voo na região do Vale do Javari Foto: Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)/Divulgação
Possuelo faz coro ao colega diante da presença de religiosos em áreas estratégicas dentro da Funai para contato com os povos isolados e de recente contato.
- Num contexto de pandemia, olha a incoerência de tudo isso! Num momento que a grande arma para índios e não índios é exatamente o isolamento e algumas tribos naturalmente estão isoladas, esse isolamento está sendo violado e quebrado por interesse religioso. É um absurdo. Para você ver o tamanho do absurdo que nós chegamos é só olhar e ver que temos um missionário na coordenação de povos isolados da Funai. Nunca um missionário poderia ter um cargo desses. A menos que a política seja essa : estabelecer o contato. E a política não é esta, a política vigente é a de não contato - diz.
Segundo ele, falta atitude do Estado e maior controle das fronteiras e áreas indígenas, que nunca passou por uma fiscalização de qualquer tipo de autoridade regional.
- O Estado não faz nada porque não quer. Se o Estado quer exercer a tutela sobre os povos indígenas, se o Estado quer exercer a sua autoridade sobre o seu patrimônio, pela preservação dos povos indígenas, o Estado simplesmente age, retira esses missionários e briga na Justiça. O que está acontecendo é uma "semi permissão, o território está semiaberto.
Procurada, a Funai ainda não se manifestou sobre as opiniões de seus ex-presidentes
Ele compartilha a opinião de Meira de que invasores de terras se aproveitam da crise do coronavírus, principalmente na Amazônia.
- Em tempos de coronavírus, a crise serve de pano de fundo para destruição ambiental. Entre nós e o meio ambiente tem esse véu que se chama coronavírus, que desvia a nossa atenção enquanto os caras estão lá na Amazônia destruindo, metendo máquina, acabando com tudo, e a Funai diz "eu não autorizei" a entrada de ninguém.
O indigenista também critica a postura do governo Bolsonaro em relação à condução das políticas indígenas.
- Bolsonaro foi o pior inimigo dos povos indígenas de todos os tempos. O bolsonarismo representa uma política que foi pensada para destruir todo um histórico da Funai. Tudo que fizemos de bom está sendo destruído - finaliza.
Procurada, a Funai ainda não se manifestou sobre as opiniões de seus ex-presidentes
Ele compartilha a opinião de Meira de que invasores de terras se aproveitam da crise do coronavírus, principalmente na Amazônia.
- Em tempos de coronavírus, a crise serve de pano de fundo para destruição ambiental. Entre nós e o meio ambiente tem esse véu que se chama coronavírus, que desvia a nossa atenção enquanto os caras estão lá na Amazônia destruindo, metendo máquina, acabando com tudo, e a Funai diz "eu não autorizei" a entrada de ninguém.
O indigenista também critica a postura do governo Bolsonaro em relação à condução das políticas indígenas.
- Bolsonaro foi o pior inimigo dos povos indígenas de todos os tempos. O bolsonarismo representa uma política que foi pensada para destruir todo um histórico da Funai. Tudo que fizemos de bom está sendo destruído - finaliza.
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